terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O fim de ano nos dá medo do fim. (Arnaldo jabor)

Vou ter saudades de tudo

Eu andava pela rua São Francisco Xavier. Eram os anos 30. Tudo em preto e branco, como num filme mudo. Nas calçadas, passavam homens de chapéu, mulheres de luvas e saias compridas. Nas ruas, carros "ford-bigode" buzinavam. Eu ia em direção à casa de minha avó, lá na Tijuca.

Toquei a sineta da porta e ela surgiu no alto da escada de pedra. Cabeça toda branca, minha avó desceu até o portão: "Que o senhor deseja?", perguntou, sorrindo, mas desconfiada.

"Bem, d. Lucília, é o seguinte: a senhora não me conhece, mas eu sou seu neto. Só que eu ainda não nasci, mas resolvi passar por aqui e pedir sua bênção...". Minha avó me olhou com medo, a sineta disparou a tocar sozinha como um alarme, e eu acordei, sentindo uma infinita saudade dessa época em que eu não existia.

Acho que foi um típico sonho de fim de ano, que é festejado para esquecermos o tempo. A solidariedade natalina, as castanhas e panetones, os brindes felizes, tudo serve para banir a morte de nossas cabeças. "Como morrer num dia assim, com um sol assim?", cantou Olavo Bilac.

Uma vez, li um texto do Nabokov, em que ele conta que vira umas fotografias de família, tiradas antes de seu nascimento. Sentiu-se, numa pré-morte, abandonado antes de viver, traído por seus parentes, rindo, felizes sem ele. É impossível entender a não existência. Daí o terror - como pensar o impensável? Não adianta: tudo que se disser sobre a morte é lugar-comum - inclusive esse.

Li um texto incrível do Martis Amis sobre os últimos momentos do Muhammad Atta, o comandante do ataque às torres do WTC, no 11 de Setembro. Ele afirma que Atta não era religioso, nem político, nem revolucionário. Não acreditava em Alá; apenas queria conhecer o inominável, o segundo em que a vida acaba contra a muralha, aquele centímetro entre o ser e o nada.

O grande terror é sabermos que, mortos, ficaremos desatualizados logo, logo. As notícias vão rolar e eu de nada saberei. Como ficar por fora das artes, da política, até dos escândalos do Congresso? Haverá crises mundiais, filmes que estreiam, músicas lindas, e eu lá embaixo, sem saber das novidades? Quem ganhou a Copa? É insuportável a desinformação dos falecidos. Nelson Rodrigues dizia que em jogo do Brasil, até os esqueletos ouvem os lances num radinho de pilha, no fundo da cova. Não estar é terrível.

Meu avô disse uma vez: "Acho triste morrer, seu Arnaldinho, porque nunca mais vou ver a avenida Rio Branco...". Isso me emocionou, pois ele ia diariamente ao centro da cidade, onde tomava um refresco de coco na Casa Simpatia, passava na Colombo, comprava goiabada "cascão" e queijo de minas e voltava para casa, de terno branco e sapato bicolor.

Há um menu de mortes, vividas de mil maneiras, ou melhor, não se vive a morte, óbvio, pois estamos no furo da tragédia, no olho do fim. A morte não entra em cena; no "Ivan Ilitch", do Tolstói, quando ela chega, acaba o conto. Só assim se pode falar da morte: pela ausência. A morte não está nem aí para nós; ela tem "vida própria".

A morte ignora nossos méritos, nossas obras. Ela é uma simples mutação da matéria que se cansa de resistir à vida. Freud: "A vida é o conjunto de forças que resiste à pulsão de morte". A matéria quer sossego. Às vezes, quando tenho vontade de morrer, imagino, por exemplo, o mar da Bahia: vou deixar esse céu azul colado no grande oceano que bate em pedras negras com o sol afogado no horizonte?

Vou sair daqui para ir onde? Ao encontro de Deus? Mas, já estamos na eternidade, o universo é a eternidade. Não é que Deus esteja em tudo; tudo é Deus, como o grande gênio Espinosa sacou. Viver é ver Deus, ali, na galáxia e no orgasmo, no buraco negro e no coração batendo - tudo a mesma coisa. Perdemos a paz dos pássaros e macacos, mas esse exílio nos deu a maravilhosa anomalia da linguagem. Vemos o universo de fora, estando dentro. Parafraseando Cézanne, "somos a consciência do universo que se pensa em nós".

Desculpem o papo "cabeça", mas final de ano me faz "filosófico"...

Por isso, quando penso que não irei ao meu enterro, tremo de pena de mim mesmo. Vou ter saudades de tudo. Acho triste a lagoa azul e roxa no fim da tarde do Rio e eu sem ver nada. O jazz tocando num piano bar e eu ausente. Não terei saudades de grandes amores, nem do mundo de hoje, excessivo e incessante. Não. Debaixo da terra, terei saudades apenas de irrelevâncias: algumas tardes nubladas de domingo, quando o ar fica parado, com urubus dormindo na perna do vento; terei saudades do cafezinho, de beiras de botequins, do uisquinho ao cair da tarde em Ipanema - minha morte é carioca. Não terei saudades deste mundo febril; só de quietudes. Terei saudades de alguns raros instantes sem medo ou culpa, de momentos de felicidade sem motivo ao ouvir, digamos, "Sophisticated Lady", no sax de Ben Webster e Billy Holliday, Erik Satie, João Gilberto, Matisse, Rimbaud, João Cabral, "Cantando na Chuva"; terei saudades de Fred Astaire dançando "Begin the Beguine", com Eleanor Powell, felizes por toda a eternidade.

Nada de grandes prazeres globais, só calmarias: o silêncio entre amigos na paz de um bar, papos de cinéfilos, risos e camaradagem de subúrbio, Lapa, o samba com o clima de amor que nos envolve nas rodas pobres, Noel Rosa, pernas cruzadas de mulheres lindas e inatingíveis, terrenos baldios, Paris (claro), o tremor de medo e desejo da mulher na hora do amor, a timidez, a delicadeza, a compaixão, a súbita alegria de uma vitória, o prazer da arte, Fellini, Chaplin, Shakespeare e Tintoretto em Veneza para sempre, terei saudades do desejo e, claro, do meu Brasil.

Há mortes súbitas e lentas. Você, frágil leitor, qual delas prefere? O rápido apagar do "abajur lilás" num ataque cardíaco ou o lento esvair da vida, sumindo com morfina?

Eu queria morrer como o velho Zorba, o grego, em pé, na janela, olhando a paisagem iluminada. E, como ele, dando um berro de despedida. Mas não tenho sua grandeza épica.

texto: Arnaldo Jabor.

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