quarta-feira, 18 de agosto de 2010

A palmada que dói mais.

Tratar sintomas de problemas sociais é importante, mas nem tanto. Erradicar causas, sim, é decisivo. Se não for feito, a sociedade não muda de rota, permanece no atraso. Faz de conta que avança, modifica alguma coisa para que tudo fique como está. Retoca a aparência sem mexer na essência. Aprimora textos legais, fazendo-os exemplares, mas descumpridos. Semeia a boa intenção em terrenos distantes de onde nasce o gesto. Cria a falsa doutrina do progresso baseado no culto fundamentalista dos indicadores econômicos, exaltados pelos clérigos dos templos bancários para converter multidões de novos fiéis por meio da sedutora perspectiva da fé no consumo. A única que, nos tempos modernos, move montanha

A proibição da palmada na criança, regra que convence a maioria dos cidadãos, é exemplo dessa cultura de tratamento sintomático que caracteriza a sociedade brasileira. Reflete uma iniciativa de incontestável mérito, capaz de alertar os cuidadores de crianças para os riscos da violência comportamental que muitas vezes não sabem conter. Não alcança, porém, as causas da condenável falta de compostura para com a infância do país. Encanta pela sublimidade do propósito. Deixa a desejar, contudo, por não projetar medidas eficazes que desativem as raízes do desrespeito à criança no Brasil, uma vergonhosa atitude que desmente a pretendida condição de terra abençoada por Deus.

O infanticídio hediondo sustenta os sensacionalismos repetitivos dos meios de comunicação, mas parece não comover um público já insensível a matérias dessa natureza. O abandono covarde de crianças multiplica-se nos mais distintos ambientes, nas mais diversas formas. É expressão irrefreável da negação de direitos fundamentais, perpetrada sob o olhar indiferente e a passividade cúmplice dos cidadãos. O trabalho infantil, mácula indigesta que se configura indelével no cenário pátrio, resiste aos esforços para extingui-lo, todos na estratégia das medidas puramente sintomáticas.

A prostituição de menores grassa nos centros urbanos. Gera economia tão informal quanto imoral, tem experiência consolidada, regularidade e fomento. Só lhe falta regulamentação profissional para que seja exercida fora da clandestinidade. Tal providência pode mostrar-se absurda, mas não está descartada numa sociedade que aceita, com absoluta naturalidade, toda sorte de abusos contra criaturas em crescimento e desenvolvimento. A pedofilia campeia solta, impune, violentando, a mais não poder, a meninada desprotegida. Não há perspectivas de controle desse crime, haja vista dados e fatos que lhe dão fôlego entre monstros embrutecidos, feitos para abusar.

Nada disso é obra do acaso. São resultados do desprezo dos brasileiros para com o ciclo de vida mais importante na formação do cidadão. A criança é simplesmente ignorada nas políticas públicas do pentacampeão mundial de futebol. A Copa de 2014 vai acelerar obras em várias cidades. No entanto, nenhuma delas contribuirá para melhorar o retrato real dos menores que nascem e crescem no desalento de tantas carências cotidianas. Falta visão educacional prioritária voltada para a promoção da infância como requisito insubstituível da cidadania.

Recente pesquisa da Fundação Getulio Vargas (FGV) traz à tona a prova desconcertante de quanto a sociedade brasileira desconsidera o valor da criança. De fato, as peças orçamentárias em vigor revelam que o Brasil investe 17 vezes mais na terceira idade que na infância. Desrespeita assim a norma legal do Estatuto da Criança e do Adolescente ao inverter a prioridade na destinação dada aos recursos públicos. Uma violenta palmada no peito da população infantil. Não que a senectude deva ser esquecida, mas a infância tem de vir antes por simples questão de coerência biopsicossocial.

As consequências da distorção são flagrantes. Apenas 14% das crianças nos seis primeiros anos de vida têm acesso a creches e pré-escolas de qualidade. As demais ficam expostas a agressões de toda espécie. Projeto de lei (PL) da Sociedade Brasileira de Pediatria em parceria com a senadora Patrícia Saboya tenta criar o Programa Nacional de Educação Infantil para corrigir a iniquidade. Busca reverter a triste sina da maioria das crianças. O PL tramita no Senado a passos de tartaruga, desde 2007. Enquanto isso, a infância é mantida, como sempre, à margem dos direitos que lhe cabem em grau de prioridade.

Não adianta atenuar os sintomas da violência. Os brasileiros só deixarão de dar palmada na criança quando a sociedade deixar de dar palmada na infância. É a que dói mais.

»Dioclécio Campos Júnior
Médico Pediatra. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria

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